“E olla meu amigo.
Agora
perante nós
o nada xurde derradeiro
coma toda orixe."
Ángel Valente
De uma Não-Morte
... e numa interrupção nasce o poema; em que interrupção morrerá o poeta? — (talvez impetuosamente, no mesmo rasgo descontínuo em que nasce o poema — aí, só aí, morre o poeta)... Imaginemos uma praia, um vulto negro que procura (talvez) reinventar-se na vilegiatura das ondas, enquanto uma madrugada se esbate pela areia. Imaginemos um poeta a extinguir-se nessa praia.
Escrevo o momento súbito — um momento súbito — de devastação, de reinvenção, e escrevo num lugar — o único lugar — que me cadencia e desequilibra, numa ruptura brava e calma de todos os presentes. Escrevo e falo do poeta que musicava o desequilíbrio, fora do tempo e no rés-vés do tempo, nesta praia em que cada onda é pulsão de amor e morte — de amor ou morte — e interrupção avivada ao ritmo das ondas.
É como se:
De súbito a praia, e lembro-me de ti na interrupção das ondas, onde nasce o poema e morre o poeta numa possante não-morte. Pela ferocidade da natureza da sua interrupção, em vez de poeta, chamemo-lhe “impetuoso”, pela interrupção que se constitui em poema (pela interrupção de ti): impetuoso.
Produtor de interrupções, de tal maneira que tenta apropriar a sua própria interrupção — tenta abarcar e desfalece, quer sair de si, na sua natureza de poeta. Esta é uma boa medida para o carácter do seu ímpeto: poeta na interrupção que cria o poema; impetuoso — para sempre — na interrupção em que se abarca e se esvai.
Ele quis confundir o poema nascituro com o poeta moribundo. Daí que, uma vez naquela praia, no círculo não linear das ondas, tenha escolhido uma (não)-morte.
Lembro-me de ti, impetuoso, e sei que...
... numa nova e renovada interrupção, num fulgor criativo, numa tempestade e na brisa breve que a anuncia, eu sei que ele voltará — o impetuoso.
Voltará no último impulso da maré, à sétima onda, e, do limiar do seu regresso, na sua dissolução de areia e espuma, irá retomar a sua força num novo poema. Será ele, o impetuoso, que me dirá da retumbância excessiva da sua interrupção, que o faz aparecer por entre as faúlhas do seu desaparecimento, desmistificando, assim, a sua devastadora suspensão.
É porque não são os obstáculos dessa tua não-morte que me põem tão insuportavelmente insatisfeito, mas sim essa impressão de tempo suspenso que foi a tua partida: De súbito, como eu nesta interrupção de ondas e a lembrar-me de ti, conseguiste prolongar aquele instante, esse segundo, num ímpeto, num estampido, em toda a extensão do teu poema — e o tempo todo foi (é), para ti, aquela praia nesse momento e nesse limiar. Inerme ao avanço do tempo, ficaste nesse instante e permaneces, impetuoso, aí onde algo te dizia: morre antes que os deuses te amem... Recorre a ti próprio, antes que os deuses te usurpem, no tempo do seu amor, e faz deflagrar o instante em que
— De súbito esta praia, esta extensão de areia, e eu lembro-me de ti...
E tu, numa eternidade que és tu próprio, com um coro que diz
— Não morreste sem que a tua morte, impetuoso, semeasse os grãos da tua tempestade...
E algo falha no teu gesto, porque a criatividade vive em ti, mesmo na tua desinvenção, até no teu desalcance do tempo em primor de um instante. E é como se não houvesse nunca um mar indiferente, uma cadência consonante ao olhar que se apaga, num apelo lancinante de infinito.
É por isso que desacredito o teu adeus, e, numa brisa que me queima as lágrimas, contemplo o teu regresso para te dizer do avanço do tempo, e que, fora desta praia, é ainda no tempo que acontece o teu regresso.
É na interrupção que nasce o poema e morre o poeta. Esta foi a praia em que escolheste (não) morrer!...
Hugo Monteiro, Interrupções